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14/04/2024

Antes das Diretas Já

Oscar Pilagallo, autor de O girassol que nos tinge, escreve sobre sua experiência pessoal nos momentos que antecederam o maior movimento popular do Brasil

A minha geração, de meados dos anos 1950, teve uma adolescência e primeira juventude à sombra da anterior, marcada por todos os excessos, do heroísmo inglório da luta armada ao anticonsumismo hippie do desbunde comportamental. Tudo parecia remeter a um romantismo gauche que recobria de certo glamour os nascidos nos anos 1940.

No Golpe de 64, éramos crianças. No golpe dentro do golpe de 1968, pré-adolescentes. Como resistir ao que se ignora? Mesmo em 1969, enquanto jovens barbudos em Woodstock mergulhavam na lama ao som da guitarra distorcida de Jimi Hendrix, os teenagers daqui, com ecos da Jovem Guarda nos ouvidos, ainda cultivávamos o buço e outras penugens. A acne importava mais que a ditadura ou a contracultura.

No meu caso, a consciência política só viria à tona, de verdade, na primeira metade dos anos 1970, quando ingressei na faculdade de jornalismo, — por coincidência, no início do ensaio geral para o renascimento do movimento estudantil, que eclodiria em 1977, com suas manifestações improvisadas e arriscadas passeatas. A primeira vez que a gente corre da polícia, a gente nunca esquece.

Sempre secundária, se tanto, minha atividade na vida pública subiu um degrauzinho em 1979, durante a malfadada greve dos jornalistas em São Paulo. Na histórica assembleia que lotou a igreja da Consolação, coube a mim, no revezamento de dezenas de companheiros ao microfone, relatar a situação no jornal de economia onde eu trabalhava. Mais tarde, passei algumas madrugadas ajudando a confeccionar miguelitos para furar pneus dos caminhões de entrega dos jornais. Com bolhas nos dedos exibidas com orgulho, quase rocei o encanto radical da geração que ia na frente.

Mas a greve me jogou no contrafluxo da história. Demitido e sem perspectiva de contratação, como centenas de colegas, preferi partir para uma temporada no exterior e checar o que a Velha Albion teria a me oferecer, além das condições precárias que George Orwell descreveu em Na pior em Paris e Londres[GMR1] . Provavelmente cruzei nos ares, em sentido contrário, com exilados que, pós-Anistia, voltavam para o verão da abertura. No retorno, dois anos mais tarde, tratei de retomar a carreira.

Foi com essa bagagem — nem leve nem pesada demais para os meus vinte e tantos anos — que desembarquei na praça da Sé, no centro de São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, como um dos muitos jornalistas da Folha que ali estavam para cobrir o primeiro megacomício das Diretas Já, algo que ficou na fronteira entre o ato de protesto e a festa cívica.

A Folha me deu um posto de observação privilegiado — era, afinal, o jornal das Diretas, aquele que se antecipara à campanha, empurrando-a, cobrando empenho das lideranças políticas, estimulando a adesão da imprensa em geral, convocando a população a sair às ruas. Frequentar a redação era estar no olho do furacão.

Sem o charme revolucionário da geração que a precedeu, a dos anos 1980 acabou mandando bem. “Quero votar pra presidente” era outra maneira de dizer “abaixo a ditadura”. O muro pichado às pressas deu lugar ao slogan com visual caprichado, mas as palavras de ordem confluíam para o mesmo ponto. 

A modéstia do objetivo da campanha viabilizou a frente ampla — algo que seria impossível se as várias correntes de oposição defendessem projetos excludentes para o país — e, apesar da derrota no Congresso, contribuiu para seu legado longevo. Hoje, quarenta anos depois, em que pese a ameaça recente do recrudescimento autoritário, a defesa da democracia permanece como um valor civilizatório, como procuro narrar em O girassol que nos tinge: uma história das Diretas Já, o maior movimento popular do Brasil.

Oscar Pilagallo, autor de O girassol que nos tinge


 [GMR1]https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535921601/na-pior-em-paris-e-londres

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