Bate-bola com Ingrid Fagundez
A autora de Diário do fim do amor fala sobre registrar a própria vida no papel e a importância disso

Qual a parte mais desafiadora de transformar o seu diário em livro?
Ganhar a distância necessária dos meus escritos para entender como — e se — eles poderiam interessar a alguém além de mim mesma. Essa foi a parte mais desafiadora porque exigiu tempo, um recurso escasso nos nossos dias, mas sem o qual nada se escreve, e um exercício contínuo de autoanálise e autocrítica, que, no entanto, não poderia ser tão feroz a ponto de castrar um desejo de expressão. Precisei deixar os anos passarem e voltar aos meus diários com um olhar de investigadora para não usar aqueles registros como um espelho — uma maneira de evocar as lembranças de um amor. Era preciso ver ali boas frases e ideias, assim como outras ruins, infantis, mal desenvolvidas. E então fazer a pergunta inescapável: o que ali se encaixaria num projeto literário sobre a experiência das mulheres com o amor e a escrita? O que tocava, de alguma forma, uma vivência mais ampla? E o que era o chororô de uma jovem imatura, por vezes tão dramática? É claro que deixei alguns trechos mais derramados, afinal, o diário é um gênero ingênuo, porque a diarista/o diarista não sabe como será o dia seguinte, além de o apaixonado ser um cego. Mas se mantivesse toda a minha dor de enamorada, sem editá-la, ninguém aguentaria. Eu sabia que a leitora/o leitor não era minha amiga/meu amigo, não iria me consolar; nossa relação é outra, de igualdade.
Você pesquisou o diário de grandes autoras, como Virginia Woolf e Sylvia Plath. O que mais te encantou nesse processo?
Desde cedo sou fã da chamada marginália da literatura. Sempre gostei de diários, cartas, bilhetes, fragmentos de escritoras e escritores, por vezes lendo esses escritos antes de suas “grandes obras”. Mas só há pouco entendi que talvez o fizesse por me sentir mais perto delas e deles em seus registros íntimos do que em seus clássicos. Ser uma escritora me pareceu mais possível ao descobrir que Virginia Woolf também se achava inadequada e ultrapassada, sentia-se insegura sobre seus livros. Mais do que no trabalho de linguagem vertiginoso e monumental de As ondas ou Ao farol, no diário, Virginia era uma companheira, uma confidente, alguém que compartilhava dos meus medos.
Ao pesquisar mais detidamente sobre esse gênero, primeiro no mestrado, depois para cursos que ministrei durante a pandemia, e então para o livro, reforcei e expandi essas impressões. Entendi que não apenas Woolf, Plath e Nin, que conhecia havia mais tempo, como Sontag, De Jesus, Weil, Curie e Pizarnik, além de tantas outras, carregavam angústias e conflitos semelhantes sobre a escrita e o amor. Isso porque o amor romântico exigiu — e ainda exige, vemos sua força no movimento das tradwives — submissão das mulheres, uma postura de doação, de recusa dos próprios desejos em prol de um Outro, em muitos casos de um homem. A literatura, no entanto, pede exatamente o contrário: um nome e estilo próprios, autoridade, autoria. Por isso Sylvia Plath se debate tanto em seus cadernos, reafirmando sua vontade de “escrever contos e poemas e um romance e ser mulher de Ted e mãe de nossos filhos”. Como fazer as duas coisas?, elas se perguntam. Como ser tudo? É uma questão que ainda aflige muitas de nós e que me assombrou durante essa relação amorosa: como se doar e continuar pertencendo a si mesma? O que mais me encantou, portanto, foi encontrar nos diários delas essa “irmandade que permite o fracasso e a esperança”, como nomeei no livro.
Manter um diário em uma era tão digital é dar certa continuidade à vida analógica?
Creio que sim. Desde que o diário seja feito num molde mais tradicional, fora das redes. Algumas pessoas usam o Instagram e outras plataformas como diários digitais, compilando fotos, vídeos e textos dos dias, mas, ali, existe um público que assiste a esses registros imediatamente, e que interage com eles, interferindo nos próximos conteúdos. Afinal, é muito difícil não ser influenciado por preferências, elogios e críticas dos outros. Então o ato de compartilhar é afetado de alguma forma. Já no caderno, escondido dos olhos alheios, ao menos num primeiro momento, tudo é possível. Experimentações, fracassos, repetições, autocomiseração num dia e autoelogio no outro. O diário analógico acolhe entradas de qualquer tamanho, rasuras, páginas rasgadas, lágrimas. Podemos colar uma mecha de cabelo, podemos queimá-lo, apagando aquelas linhas para sempre. Ele existe para a diarista ou para o diarista e, ao menos no início, para mais ninguém, então nos incentiva a liberar a expressão sem medo de julgamentos e sem expectativa de aclamação. Manter um caderno é dar continuidade à vida analógica porque ela acontece um tanto no silêncio, na intimidade — e no mistério —, mais do que a digital.
Por que escrever sobre a própria vida?
Sempre que me deparo com essa questão penso que é uma falsa pergunta. E tento responder com outra: podemos escrever sobre algo que não seja a nossa vida? Não me refiro à vida enquanto uma sequência de eventos específicos — nascimento, infância, adolescência, casamento, filhos, divórcio, morte —, mas à vida dos sentimentos, das experiências, das lembranças. Repito aos meus alunos que livros não nascem de chocadeira, mas de pessoas. E os autores partem de seus sentimentos, de suas memórias e de sua sensibilidade do mundo para escrever, independentemente de usá-los para criar personagens fictícios ou reconstruir acontecimentos autobiográficos. O “eu”, portanto, é sempre o ponto de partida. Mesmo que não fale diretamente de si, o escritor nos dirá algo sobre como enxerga o mundo, percepção espalhada e espelhada nas tramas que decide contar, nas cenas que descreve, nos personagens a quem dá luz. Em seu célebre texto “Por que escrevo”, George Orwell diz que “a partir de 1936, toda linha que escrevi em trabalho sério se voltava, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo”. Sua postura política, sua luta contra os líderes despóticos que viu se fortalecerem antes e durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, estão presentes tanto em seus ensaios quanto em suas reportagens e romances distópicos. Nos porcos e nas galinhas de A revolução dos bichos, em artigos sobre o nazismo ou sobre seu fazer literário, vemos sempre o mesmo Orwell.

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