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30/04/2025

Nestor Pestana by night

Rodrigo Lobo Damasceno, baiano radicado em terras paulistanas, é autor da plaquete Muchacho e outros poemas, com versos que perambulam por vários lugares do centro de São Paulo. O poeta conta mais sobre essa relação neste texto inédito.

A coisa acaba num Oxxo. Mas antes, quem entra na Nestor Pestana vindo da Augusta, da Martins Fontes ou da Martinho Prado, olha pra cima e vê, no começo da rua, a fachada do Teatro Cultura Artística – uma obra feita por Di Cavalcanti, finalizada em 1950, e que resistiu ao incêndio que consumiu o prédio em 2008. É uma obra enorme, com quase cinquenta metros de largura e dez de altura, uma representação colorida, imponente e meio psicodélica das diversas musas ligadas à música, ao teatro, à dança, a esse tipo de coisa que um lugar chamado Cultura Artística supostamente abriga. Já quem entra na Nestor Pestana vindo da praça Roosevelt olha pra frente e vê, no começo da rua, no lado oposto ao Cultura Artística, as paredes de um karaokê famoso e obscuro, decoradas também por uma série de musas: desenhados num estilo caricatural, estão lá, sentados em mesas, bebendo cerveja, discotecando, rindo, comendo, personagens como Ronaldinho Gaúcho (vestido com o uniforme completo do Barcelona), Péricles, Anitta, Zeca Pagodinho (aparentemente trabalhando como garçom), Beyoncé, um policial da Rota (cujo rosto já foi devidamente vandalizado), Alok e outras estrelas populares mais ou menos identificáveis (talvez seja Lady Gaga, talvez também seja o cantor sertanejo Leonardo, talvez seja um humorista de stand up). 

A Nestor Pestana tem cerca de trezentos metros, é uma rua bem curta, meio escondida, de sentido único, ligando a Roosevelt à Consolação, e que também leva até a Ipiranga. Passado esse começo guardado pelas inúmeras musas, há a Lanchonete Cupido, um bar que conta com shows burlescos, uma igreja presbiteriana (a primeira da cidade de São Paulo), a Associação Cristã de Moços e sua academia imponente, uma série de estacionamentos, alguns prédios residenciais, três botecos, um famoso ponto de esfirras, uma ou duas casas de tolerância, um mercadinho “de bairro”, um café, uma locadora de carros, um salão de beleza, uma lavanderia, um imenso prédio em construção num espaço que já serviu a uma igreja, a um restaurante frequentado por celebridades globais, a uma balada famosa por suas pancadarias generalizadas e, por último, a um estacionamento. Mas, como eu disse, a coisa acaba num Oxxo, talvez o pior Oxxo de São Paulo, certamente o menor Oxxo de São Paulo, que funciona vinte e quatro horas por dia e que é alvo preferencial de assaltos (diante disso, um dos seguranças do mercado costuma deixar exposto, durante as madrugadas, um cassetete, na verdade um pedaço de pau, com a palavra “diálogo” escrita nele). 

A Nestor Pestana tem um movimento constante, um barulho quase ininterrupto de carros, buzinas, sirenes, conversas, latidos, britadeiras. Passa gente engravatada, passam cachorros usando camisa de botão e chapéu, passam gatos aninhados nos ombros dos seus donos, passam atletas, influencers, artistas, hipsters com e sem cabeças de anjos, grupos de punks, gringos perdidos, professores universitários, engolidores de fogo. Vez ou outra, a rua é cruzada por um homem com os trajes típicos de Zé Pelintra. Ele carrega um maço de notas de dois reais no bolso do paletó e uma vez me perguntou: tá pensando que é fácil andar assim, aqui? Do dia para a noite a rua se transforma, alguns estabelecimentos se fecham, mas o comércio não para: o motociclista que chega de botas brancas de salto plataforma e casaco de lantejoulas azuis precisa ser atendido (também não deve ser fácil andar assim, aqui). Por todo lado, gente trabalhando: vendedores, garçons, cartomantes, atrizes de teatro, caixas, seguranças, poetas, porteiros. Me pergunto se em algum momento, ao longo desses trezentos metros, todos dormem – ou se isso nunca aconteceu, se nunca poderá acontecer.

Em Daguerreótipos, Agnès Varda filma e conversa com os comerciantes da Rue Daguerre, em Paris, onde a própria cineasta viveu. Varda registra o cotidiano de atendimentos, de contas para trocos, de tédio, de música e de eventuais espetáculos de mágica em que se desenrolam a vida de padeiros, açougueiros, perfumistas, relojoeiros, alfaiates e outros profissionais de comércios modestos, quase artesanais, em vias de desaparecimento. São quase todos de fora de Paris (como a própria diretora): gente das províncias francesas, gente da Armênia, gente de outros lugares que, na Rue Daguerre, espera a noite cair para fechar os seus comércios e, enfim, dormir. Na parte final do filme, Varda pergunta àqueles trabalhadores, seus vizinhos, sobre os seus sonhos: eu não durmo, eu só cochilo, diz um; nós não sonhamos, não temos tempo, diz outra; o relojoeiro sonha com os relógios mais difíceis de consertar; o açougueiro sonha com um corte de carne que ele não tem na loja; o barbeiro tem sonhos românticos, e também sonha com a sua juventude perdida – ele é um tipo sentimental, diz; alguém tem pesadelos e é sonâmbulo; o imigrante tunisiano sonha com a Djerba, sua ilha natal; o padeiro, como todos os padeiros, não dorme muito – mas quando dorme e sonha, sonha com a Receita Federal e com a falta de grana. 

Ao consultar os arquivos extraviados do sonho operário, em A noite dos proletários, Jacques Rancière prefere observar as noites sem sono, aquelas noites “subtraídas à sequência normal de trabalho e descanso”, que são uma espécie de “interrupção imperceptível, aparentemente inofensiva, do curso natural das coisas, na qual se prepara, se sonha, se vive já o impossível”, aquelas “noites de estudo, noites de embriaguez”. Os trabalhadores da Rue Daguerre, ao contrário, não conseguem sabotar essa sequência de trabalho e descanso, a não ser roubando as horas de descanso para mais horas de trabalho – segundo Varda, eles negam ter uma vida interior, ilusões ou sonhos. O sono, para eles, é o imobilismo. Com o que sonham os trabalhadores da Nestor Pestana, os que dormem e descansam e os que não dormem e se dedicam a outros afazeres – eis um mistério de hoje que talvez Varda já nos tenha revelado em grande parte ontem. 

Dias atrás eu sonhei que estava em Nova York (onde nunca estive), cruzando Manhattan num daqueles táxis amarelos. Eu estava acompanhado por Gabriela, e íamos agarrados no banco de trás; de alguma forma, sabíamos que estávamos numa cena de cinema, embora não comentássemos a respeito disso, e ora nos beijávamos, ora admirávamos as luzes da cidade enquanto o motorista escutava “A Night in Tunisia” na versão de Dexter Gordon (primeiro ele imitava a cadência do sax com a boca, depois batia com os dedos no volante como se tocasse as teclas do piano). A certa altura, o taxista parou e disse que não poderia ir adiante. Olhamos em frente e não havia nada, apenas uma escuridão enorme. Questionamos o motorista e ele disse que aquilo era uma parede, que não tinha como passar por ela. Sem entender bem, descemos do carro e fomos andando enquanto o taxista dava ré em alta velocidade, olhando fixamente para frente, em nossa direção. Demos alguns poucos passos e de fato chegamos a uma espécie de muro que não víamos propriamente, mas que estava lá, impedindo a passagem. Andamos ao longo daquela espécie de monolito e, após algum tempo, divisamos uma coisa escrita nele, em letras bem pequenas, um grafite, um pixo, em inglês, e que era um poema de Langston Hughes chamado “Ennui”:

It’s such a
Bore
Being always
Poor

Que traduzimos como

É tão
Doído
Tá sempre
Liso

Nesta madrugada do dia 11 de abril de 2025 eu não dormi, fiquei escrevendo este texto sobre a minha rua.

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