Gabriela Biló: um relato pessoal sobre a pandemia de covid-19
A fotojornalista, autora de A verdade vos libertará, fala sobre sua experiência com a covid-19 e compartilha um ensaio de fotos feito no hospital
Uma das minhas formas de lidar com a minha própria mortalidade sempre foi a fotografia. Quando peguei covid-19, em maio de 2021, antes da vacina, não foi diferente. Nós, fotojornalistas, temos uma ideia de que somos invencíveis, sempre olhando as coisas através de uma lente, quase como se elas não fossem reais. Ao mesmo tempo, lutamos contra essa ilusão para nos mantermos conectados com o assunto, porém seguros. Observadores, nunca atores.
Durante a pandemia, quando o jornalismo e a informação se mostraram mais necessários que nunca, milhares de nós que trabalham com imagem não tiveram o privilégio de ficar em casa. Apesar do medo de contaminar nossos familiares, de adoecer e não poder trabalhar, estávamos sempre lá, na linha de frente. Somos pessoas por trás das imagens, pensando, aprendendo, errando, tentando. Se você é fotojornalista e não está tentando fazer o mundo melhor, você não entendeu nada. Muitos de nós não sobreviveram à batalha pela informação e contra a covid-19. Eu me contaminei cobrindo o Palácio do Planalto, longe da minha família e dos meus amigos.
Este meu singelo ensaio feito em parte com a câmera, em parte com o celular, quando eu já não tinha forças para levantar a câmera, é uma homenagem a essa profissão que tanto amo e que me ajudou a seguir em frente em um dos momentos mais assustadores da minha vida. Apresento o ensaio com o texto de uma grande amiga que morava comigo e salvou a minha vida, Sarah Habersack:
“Três horas depois que a minha melhor amiga morreu no outro lado do mundo, Biló apareceu na minha porta pela primeira vez. Ela queria conhecer o apartamento. Tínhamos decidido nos tornar roomies.
Eu, completamente perdida, abri a porta. Ela, curiosa sobre o apartamento, entrou. Depois de conhecer todos os cômodos da futura nova casa comigo segurando o choro, ela olhou para mim e perguntou: ‘Você quer que eu durma aqui com você? Não quero te deixar sozinha’.
Um ano e onze meses depois, tive que deixá-la sozinha, no Hospital Brasília. Protegidas e separadas por máscaras, a única conexão que nosso corpo ainda podia manter era por meio da cadeira de rodas onde ela sentou e que eu empurrei pelos corredores da sala de emergência da covid.
Ao longo dos meses da pandemia, tínhamos chegado perto de acreditar que Biló era uma espécie de super-humana, com poderes mágicos que a protegiam do vírus. Os inúmeros dias e horas em que esteve diretamente exposta à irresponsabilidade do governo para nos dar olhos ao centro da crueldade através de fotografias não pareciam fazer-lhe mal. Mas mesmo que sua energia desenfreada nos fizesse acreditar que ela podia mover o mundo sozinha, Biló não é um Highlander. Nenhum de nós é.
Os primeiros dias de sintomas mudaram o corpo dela devido à dor. Os momentos em que ela se sentia melhor foram ficando cada vez mais raros. Mesmo assim ela continuava mais preocupada com o risco de eu pegar o vírus de novo, com a aflição da mãe, longe, em São Paulo, do que consigo mesma. As noites tossindo, os olhos se escondendo da luz, o estômago intolerante, as dores de cabeça que não a deixavam pensar direito: ela não permitia reconhecer que nada disso tirava suas forças, o controle sobre si mesma. Três vezes no total tivemos que ir ao hospital antes que ela finalmente recebesse o tratamento necessário. Todas as três vezes tive que recorrer aos meus melhores argumentos para convencê-la de que ela não era um fardo para mim e que era hora de permitir que ela fosse uma prioridade pra mim.
Se você acha que apenas os homens aprenderam a não mostrar fraqueza, tente se mostrar vulnerável sendo uma mulher forte, profissionalmente bem-sucedida e independente. Boa sorte com isso.
Ela tinha medo de dormir porque não sabia o que a esperaria quando acordasse. Eu tinha medo de dormir porque não sabia como cuidaria dela no dia seguinte. Não queríamos abrir mão de um controle que já tínhamos perdido. Ela sentia o corpo tomar decisões sem lhe dar o direito de opinar. Ao mesmo tempo, ainda dependia de si mesma, das suas forças, da energia da guerreira que tantas pessoas lhe atestavam, para vencer essa luta. Com o passar do tempo ela foi ficando cada vez menos capaz de entender o que estava acontecendo e tomar decisões. Eu sentia seu desespero, assim como os olhos de sua família e amigos, que estavam em cima de mim para cuidar dela como gostariam de cuidar. A única pessoa que a doença permitia ao lado dela era eu.
Após seis dias de sintomas, o vírus ganhou a primeira rodada e nós ganhamos a luta por uma cama de hospital. Biló deixou o campo de batalha que nossa casa havia se tornado e passou para a próxima fase sozinha. Tudo o que me restava era acompanhá-la até os limites do pronto-socorro, e até os meus próprios.
Se ela estava com medo, não me disse, e eu não perguntei.
Que eu estava com medo, não lhe disse, e ela não perguntou.
Foi só quando a buscamos no hospital, quando ela teve alta, sete dias depois, que mostrou suas lágrimas.”
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