Lição de casa
A professora de educação infantil e poeta Mariana Godoy, autora de Holograma, em um texto inédito sobre educação e infância
Estamos lá pelo ano de 2002, sou uma das vinte crianças em uma turma de pré-escola, talvez com cinco anos. A professora está na frente da lousa, se preparando para iniciar um ditado. “Serão dez palavras”, ela diz, “dez palavras com G ou J”.
Antes de começar, ela se dirige a nós, sua voz clara, quase indiferente, mas firme: “Se alguém tiver dúvidas, pode levantar a mão e perguntar”. É uma permissão que parece segura, mas só agora vejo que era carregada de promessas e armadilhas, como se houvesse um subtexto, uma fronteira invisível entre o que podemos e o que não devemos questionar.
A primeira palavra é gelo.
“G ou J?”
Vejo o gelo em formato de coração que minha mãe coloca no freezer, uma tentativa de suavizar o impacto das quedas, das contusões inevitáveis da infância. Ela sempre diz que um gelinho resolve. Às vezes, finjo que me machuco, só para ganhar o gelo e esfregar nas costas do meu irmão. Depois, é claro, eu corro. Então, escrevo: gelo. Não por conhecimento, mas por instinto. A palavra carrega a frieza que seu significado sugere, mesmo que as imagens associadas a ela sejam, de alguma forma, calorosas.
A segunda palavra é janela.
“G ou J?”
Mais uma vez, a dúvida. Mas a mente é uma máquina de associações, de imagens que se sobrepõem. Vejo as caixas de papelão que meu pai me dá para transformar em casinhas de boneca. Um dia, me prometo, elas terão uma casinha de verdade, de madeira, mas por enquanto o papelão serve. Observo a minha mãe, estilete na mão, cortando a caixa, criando portas, um buraco, um feixe de luz que mantém as partículas de poeira suspensas no ar. Escrevo: janela.
A terceira palavra é jardim.
Não encontro nenhuma imagem. Só reconheço horta, só reconheço o mato que cresce sem ordem, só reconheço o campo vasto e indomado da cidade em que nasci. Penso “G ou J?” e, sem uma base sólida para decidir, levanto a mão.
A sala inteira se volta para mim. A professora, que até então parecia seguir um roteiro, é tomada por uma incredulidade que se transforma rapidamente em irritação. Pergunto se jardim é com G ou J e ela diz que não está acreditando, como se minha dúvida fosse uma afronta, uma falha no processo esperado de internalização do conhecimento. O tom de voz dela muda, vira um grito, e eu sinto em meus olhos as lágrimas pesarem. Ela chama a professora da sala ao lado, uma testemunha para minha humilhação pública, e anuncia para todos que não sei escrever. Respondo que já escrevi duas palavras e ela me acusa de zombar, mas sou incapaz de identificar imagens com Z. Finalmente, ouço a sentença: “Seu pai vai ficar muito chateado com você”.
Penso no meu pai e esqueço tudo.
Naquela tarde, não quis ir embora, o meu pai esperava na kombi estacionada, a minha mãe, de pé no portão da escola, não entendia por que eu chorava, por que eu me jogava para trás. Não consigo recordar exatamente como as coisas se desenrolaram depois que ela entendeu o que havia acontecido — essas são as zonas nebulosas da memória, os fragmentos que desaparecem ou se distorcem com o passar dos anos, restando apenas o que conseguimos agarrar, ou o que decidimos que merece ser lembrado, mesmo que já não seja verdade.
Lembro, no entanto, do momento em que ela entrou na sala da diretora. Lembro do meu pai com a voz calma, como se estivesse me falando sobre algo muito simples: “Não importa se você escreve jardim ou gardim, podemos plantar nos dois”.
Aquilo, de fato, foi inesperado, porque era a minha mãe quem costumava se desviar da lógica rígida das frases que parecia governar o mundo adulto, mas dessa vez foi ele. Ele, que sempre foi uma presença quase silenciosa, me deu, naquele instante, a primeira lição sobre o fazer poético:
- A poesia tem uma natureza babélica.
Caminhar no deserto, olhar as estrelas
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