Entrevista com Jerônimo Bittencourt
Leia a seguir a entrevista completa com o poeta, bailarino e artista urbano que encontrou nas próprias ruas da cidade o material físico para sua arte
- Como surgiu a ideia de fazer essas intervenções literárias na cidade? E desde quando você faz?
A ideia para as intervenções surgiu logo no terceiro encontro do Contrafaccionistas, um campo de investigações poéticas que coordenei durante os anos de 2018 e 2019, sediado no espaço multiartistico Capital 35.
Meu desejo era agregar pessoas para que, juntos, pudéssemos extrapolar a ideia de fruição que a poesia carrega em si e, através de um estudo mais direcionado, encontrar em poemas apontamentos e procedimentos que desencadeassem a criação de textos e intervenções pela cidade de São Paulo. Num ritual que acontecia semanalmente, entregávamos nossas noites tentando descobrir um jeito de estudar que viesse da própria poesia.
A inspiração para esses encontros já era um desdobramento dessa ideia de procedimento, pois foi a partir de uma provocação que encontrei no primeiro poema do capítulo “Poemas aos homens do nosso tempo”, do livro Jubilo, memória, noviciado da paixão, primeiro livro de poesia de Hilda Hilst escrito na Casa do Sol, que me despertou esse desejo de “estudar” poesia com outras pessoas.
Esse poema virou nosso manifesto. Ele começa assim:
Senhoras e senhores, olhai-nos.
Repensamos a tarefa de pensar o mundo.
E quando a noite vem
Vem a contrafacção dos nossos rostos
Rosto perigoso, rosto-pensamento
Sobre os vossos atos
Naturalmente aconteceu de Leia Hilda ser a primeira intervenção que surgiu desses encontros. O destino quis que um mês depois a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) apresentasse Hilda Hilst como a homenageada daquele ano. Assim, a intervenção viralizou. Uma participação no programa Conversa com Bial, em homenagem a autora, também foi interessante. Parece que a poesia mascarou o caráter de contravenção e acabamos bem-aceitos pelo grande público.
Sobre as faixas de pedestre
Em 2004, fiz parte do grupo pioneiro do parkour no Brasil. Nessa época, não havia Youtube, e a falta de referências fez com que descobrisemos na prática o que era o parkour. Muito cedo, começamos a perceber que, para além dos movimentos virtuosos de pular muros, estávamos experimentando uma nova relação com a cidade. O que mais chamava a atenção era a ressignificação natural do espaço público, abrindo uma nova leitura do que era dito sobre intervenção urbana. A arquitetura foi tomando novas formas a partir de uma relação de cumplicidade entre os nossos corpos e o concreto. Foi através do parkour que comecei a criar intimidade com a cidade, com as ruas, com o ritmo da metrópole.
A prática me aproximou da dança e, em 2008, aconteceu de eu já estar dançando em companhias. Sou de uma geração da cena da dança paulistana que nos idos de 2010 estava muito atravessada pelas criações site-specific.
Aconteceu que, em 2013, fui atravessado por Banksy enquanto criava, para o Festival Cultura Inglesa, um dueto de dança inspirado na obra dele. Ao mesmo tempo eu capturava a frase que me lançou à marcar a cidade, quando vi um vídeo do psicanalista Jorge Forbes falando sobre desejo: “O desejo atravessa a necessidade”, ele disse.
Essa frase não me saiu da cabeça e se materializou num stencil que apliquei compulsivamente em faixas de pedestre. Eu nunca havia feito nada do tipo… simplesmente aconteceu.
Logo depois, vi um vídeo do Paulo Leminski na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em que ele fala sobre o grafite e o pixo. “Escrever na pele da cidade” foi a frase que o poeta deixou escapar e que me levou a retomar a faixa de pedestres como território de escrita. Fora isso, as faixas de pedestre sempre me pareceram linhas de caderno ainda em branco, esse confronto final entre o poeta e o poema, e me convidaram para a escrita.
Acho interessante ressaltar que as intervenções desaparecem com o tempo, com o passar dos carros, com o sol e a chuva. É uma arte efêmera que precisa ser constantemente reafirmada para existir. Outro ponto é que sempre faço de dia, aos olhos dos passantes. Minha ideia é normalizar essa ação e tornar os pedestres cúmplices desse ato— o que acontece com frequência —, pois a ação não é vista como vandalismo, tanto pelo convite para ler, como pelo fato de desaparecer com o tempo.
Outras ações, em muros (muito raro), como “Leia Poetas Mortos & Leia Mulheres VIVAS”, no cemitério do Araçá (SP), fazem parte do Laboratório Poesia LIVRE, que acontece uma vez por mês e onde acabo levando para a cidade o material que produzimos em conjunto durante os encontros, e descobrir como levar a poesia para a cidade é sempre meu desejo.
- As intervenções acontecem sempre em São Paulo ou em outras cidades também?
Principalmente em São Paulo, mas entre 2020 e 2022 morei em Florianópolis e fiz muito por lá, principalmente na região central e na praia do Santinho.
- Quantas intervenções, mais ou menos, você já fez até hoje?
Com certeza mais de 2 mil.
- Faz sozinho ou tem companhia? Quem filma e fotografa?
No começo saímos em bando após meia-noite, quando terminava o grupo de estudos que acontecia no bairro de Perdizes (SP). Nessa época, minha grande parceira foi a também poeta Mariana Pernna, estudiosa de Hilst e amante do risco. Durante os dois anos de nossos encontros presenciais, muitas pessoas também participaram ativamente, estudando, pensando e escrevendo junto.
Mas desde 2020, faço esses escritos e os registros sozinho, com a cidade e os passantes como cúmplices.
- Qual a importância da poesia na sua vida?
Essa pergunta, tão simples e fundamental, me leva de assalto para Wislawa Szymborska que diz: “De novo e como sempre,/ como se vê acima,/ não há perguntas mais urgentes/ do que as perguntas ingênuas”.
Respondo que a poesia é minha única certeza, mesmo que difusa, de que pertenço a esse lugar que chamamos Terra. É um pacto com a minha própria existência e com tudo o que me cerca.
Mas o que eu gostaria mesmo de dizer, foi o que disse Sophia [de Mello] Breyner Andresen em “A arte poética II”:
“A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.”
- Quais são as suas autoras prediletas na poesia?
Apesar de minha estreia na poesia ter sido feita pelas mãos gentis de Mario Quintana, foi a partir da visceralidade de Hilda Hilst que entendi que a poesia era ação, não apenas contemplação e reflexão. E foi sempre na obra de mulheres que encontrei essa energia do ato poético, da ação, essa pulsão que me lançou à cidade.
Hilda Hilst, Wislawa Szymborska, Sophia de Mello Breyner Andresen e Orides Fontela foram sem dúvidas os poetas que mais li na minha vida. Foram elas que me lançaram ao encontro dos meus pares, também quase sempre mulheres, e foi para exaltar o nome delas que nos lançamos a marcar as faixas de pedestre. Foi pelo nosso próprio deslumbramento que convidamos a cidade a mergulhar na veemência feminina da prática da leitura, da esperança e da coragem.
- Qual a importância da poesia na cidade e na vida das pessoas?
A poesia tem a capacidade de repensar as estruturas, a qualidade de penetrar nas frestas, pois surge justamente dos pequenos espaços escuros que ainda não foram totalmente colonizados.
O que penso quando deixo esses escritos na cidade, além de convocar os passantes à leitura de forma quase imperativa, é que esse é um território ainda em disputa. Enquanto eu puder circular por aí, vou reafirmar que a poesia não está presa nos livros e que somos livres para repensar a cidade, a palavra, o mundo, os muros.
A poesia é descolonizadora, mesmo ainda sendo tão pouco acessível. Pensar no valor de um livro ou nos ambientes em que a poesia circula me faz querer explodir a palavra. Meu próximo trabalho, que está em andamento, é disponibilizar um livro inteiro na cidade. Despetalar, dissecar o livro, e colar em ordem, página à página no mesmo local, uma ao lado da outra.
Nossa vida acontece na cidade, não nos livros.
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