A fumaça depende da direção do vento
Leia texto inédito de Ana Paula Pacheco, autora de Pandora, especialmente para o site da Fósforo
por Ana Paula Pacheco
É o último dia antes do fim do semestre. Já fiz a mala com as roupas compradas na Decathlon. Jaqueta corta-vento, chapéu de safari, duas calças que viram bermudas e têm a vantagem da secagem rápida. Camisetas, maiô. Um tênis de tracking, um tênis anfíbio. Duas lingeries transparentes, uma vermelha e uma preta, para as selfies que vou mandar pro Gato. Digo, o boy, o humano. É sempre bom manter a chama acesa, repete uma voz engraçadinha e grosseira, dentro da minha cabeça. Principalmente quando anda escasso o combustível. No mais, calcinhas boxer e um sutiã confortável. É fácil fazer mala para o calor e o ecolodge providencia lençóis, toalhas de banho e de passeio. Gosto de viajar leve.
Sinto um pouco de vergonha de me animar a tirar férias logo depois de minha mãe sair do hospital. A queda causou uma fenda no fêmur, como se o osso tivesse uma consistência de giz. Enquanto a perna se recupera lentamente, a demência avança a uma velocidade estonteante. Até pouco tempo atrás, conversava comigo sem que isso produzisse muita estranheza. Eu chegava a achar bonito quando ela esquecia palavras e as substituía todas por “texto”, sem cerimônia alguma, sem perder o compasso. Quero dar aquele texto que separei para a menina, mas não sei se servirá no dedinho dela. Você ainda não me passou o texto para eu ver o que fazer com essas rugas. Aquele seu, de primeira. Como se chama mesmo aquele texto que você injetou no buço? A menina também está bunitando nos últimos textos. Vou jogar uma textada naquele velhinho chato que você trouxe para morar comigo. “Texto” talvez fosse a palavra mais importante pra nós, uma paixão que ela me ensinou na infância, quando eu não pude viajar nas férias por causa da coqueluche. Também passou a chamar meu pai, aquele velhinho chato, pelo nome do avô dela. Quando voltou do hospital, contratamos uma cuidadora e meu pai passou a ser apenas o espectador do que chamava de seus ataques de demência, depois dos quais se instalava na casa uma estranha normalidade. Um dia ela chutou a moça e metade do vocabulário foi embora em menos de 48 horas.
Mais perto de mim, dividindo o apartamento, o gato também envelhece a toque de caixa. Aos dezessete anos tem uns cento e poucos, me diz a veterinária, e eu me espanto como se não soubesse que sete vidas uma hora também acabam. Atualmente ele pesa muito pouco, menos de três quilos. Poderia ir comigo ao ecolodge, que é pet-friendly, mas teria que ficar trancado enquanto passeio, para não virar refeição de gavião, onça, anta, sucuri. Estão todos com fome, o Pantanal está em chamas. Seriam capazes de comer os próprios filhotes. Prefiro trancá-lo no apartamento, o zelador virá alimentá-lo. Estou cansada dos amores difíceis, o que, dito assim, às claras, é uma injustiça. O gato cuida de mim tanto quanto cuido dele.
De longe os incêndios parecem leves como uma pluma. Novecentos e quarenta e sete mil hectares de cerrado foram queimados no primeiro semestre de 2024, mas a fumaça não chegou até aqui. Terá chegado à ilhota fluvial onde está o ecolodge?
O gato sabe que alguém pensa muito alto nesta casa. Fica parado comigo, enquanto escuta. Prendemos o fôlego e com os olhos ele me diz que quem fala sou eu. Só falo quando quero calar as vozes, lhe digo. Não há ninguém no apartamento além de mim, por isso sei: só posso ser eu. Quem cala e quem fala. Uma das vozes, a que se importa comigo, me mandou ler a notícia dos incêndios em Miranda, a apenas seis ou sete quilômetros do paraíso fluvial. O céu e o inferno estão novamente juntos e as vozes zunem na minha cabeça como marimbondos. Quando prendemos o fôlego, eu e o gato, como se tragássemos, elas dão um tempo. Tragar o ar do tempo, eis o novo hobby. Um dedo divino risca o fósforo da ideia. Não. Pra que tanta poesia, ele me pergunta com os bigodes atiçados. Foram mesmo os dedos dos fazendeiros, querendo fazer uma grande limpeza para a boa saúde dos negócios. Todo mundo sabe, pra que dizer. Não serve pra nada. Melhor fazer isso nos pareceres, nas bolas de cristal, nos relatórios de pesquisa. Minha mãe suspendeu o acampamento e as férias já eram o que de mais precioso existe pra mim. Em casa chamávamos a coqueluche de tosse de cachorro louco. Depois fiquei sendo a cachorra louca dos meus pulmões.
Ouço a fumaça em sete idiomas diferentes. O último é o da sétima vida, que o gato traduz para mim. Preciso escrever para os responsáveis, perguntando se a fumaça ou a fuligem já chegaram lá. Boa tarde. Como outros hóspedes, estou preocupada com os incêndios no Pantanal. Há perigo de ficarmos sob fumaça? Há queimadas em outras regiões. Aqui não está havendo. Por enquanto. Estamos em funcionamento normal. Eu gostaria de saber se o fumo das queimadas e a fuligem estão chegando aí. Tenho problemas respiratórios. (Acho que me levarão a sério.) Ainda não. Mas o ar está bem seco. O ar está seco mas a fumaça e a fuligem ainda não estão chegando aí? Não chegaram ainda. Há previsão de que cheguem até aí? Preciso de informações mais precisas. Então ficam em silêncio até o dia seguinte.
No dia seguinte, Eu não posso lhe afirmar nada sobre o futuro. (O gato ri, como se fosse o gato da Alice.) Posso apenas dizer como está o dia de hoje. Céu limpo. Atividades normais. Mas os bombeiros deram alguma previsão? A voz chatinha, que se preocupa comigo mas que não é minha mãe, diz alguma coisa incompreensível. Minha mãe perguntaria se o texto deles está pegando fogo, se são verdadeiros os textos do fogo, se dá pra ler durante a noite, se temos mãos à obra. A voz chatinha que se importa comigo me manda escrever novamente, do outro celular, como se fosse outra pessoa. Sim, a voz de outra pessoa, que só pode ser eu, me manda escrever de um outro celular, aquele que guardo na gaveta para só fazer transações bancárias no app dentro de casa, num outro tom, como se eu fosse outra pessoa, para ver se as respostas são melhores. Oi, tudo bem, fiquei feliz em saber que o guia Cauan ainda está com vocês, quem sabe se tiver tempo fazemos pelo menos um passeio com ele, de qualquer forma estou muito preocupada com os incêndios nos arredores. Não só pela situação em si, as pessoas e os animais da região, também pela questão da estadia, gostaria de saber se a fazenda está segura e como está a coisa toda por aí, muita fumaça no ar? Por favor me dê um retorno sincero a respeito porque o investimento é alto e estou pensando que mesmo muito animada, será realmente uma época segura, e que nós, os hóspedes, vamos aproveitar? O gato me olha, olho no olho, e parece dizer algo como, me passa por favor o remédio para hidratar as narinas.
Alguém que já não sei se está dentro das vozes da minha cabeça, ou só no WhatsApp, responde. Estamos funcionando. Tenha calma. Aqui na fazenda não houve queimadas. Só o ar está bem seco. A fumaça depende da direção do vento. Alguém que se preocupa comigo respondo: Que bom que está tudo bem por aí. Por favor me diga se vocês têm um plano de contingência ou evacuação de emergência caso algo aconteça, irei sem carro, com o motorista indicado, e depois sigo para Bonito, isto é, em uma emergência, não tenho como sair daí sozinha. E depois preciso seguir para Bonito.
À noite mostro para o boy, o humano, a reportagem. Ele também fica muito aflito. Será mesmo o caso de eu ir? Por que fui inventar essa viagem. Ao mesmo tempo em que cuida de mim não engole esse negócio de eu querer bater as asinhas por aí. Ora, você sabe que gosto de viajar leve. E você sabe que eu não gosto quando fala assim. Muito menos quando age como se não devesse nada pra ninguém. Cada um pega o seu celular para perguntar ao prof. Google. Encontro 179 entradas sobre incêndios no Pantanal (há outras 208 entradas se eu digitar “queimadas no Pantanal”). Ele me diz que estou fazendo bobagem, pra deixar com ele. O gato vira as orelhinhas telescópicas. As outras vozes, dos marimbondos, não param de zunir. O boy manda em alto e bom som um “bingo!”, a notícia sobre incêndio em Miranda é de novembro do ano passado. Na verdade, foi o gato quem viu e pôs a patinha sobre a data. Também deve estar cansado de ficar perto de mim. Temo que faça a mágica do desaparecimento dos quilos com tanta ênfase que na volta eu não possa mais encontrá-lo. Basta perder mais dois quilos e seiscentos. As queimadas agora estão próximas da região de Corumbá, a mais de duzentos quilômetros de distância do ecolodge. Como você não prestou atenção ao cabeçalho? Respiro aliviada mas com muita raiva porque ele sempre sabe encontrar a informação certa. Uma voz me fala pra mandar embora o sabichão, enquanto outras me chamam de despeitada e orgulhosa. De-pen-den-te. A manchete diz, Incêndios causam “neve” de cinzas na cidade de Miranda, no Mato Grosso do Sul. Reportagem do dia 15 de novembro de 2023.
Há neste momento uma névoa de duzentos metros no apartamento, entre mim, ele e o gato. Viajar ou não, talvez não faça diferença. Corumbá fica a mais de duzentos quilômetros da ilha e a fumaça pode bem chegar até lá ou, a depender de quanto as chamas se alastrem no cerrado seco, a fumaça e a fuligem podem chegar até aqui, como as da floresta amazônica daquela outra vez. Na verdade sinto que já chegou. Meus alvéolos pesam como cachos de desgraça. O dia poderá virar noite ao meio-dia, como daquela outra vez, a sala encher-se de sombras. Cinza-fóssil, cinza-pedra, cinza-granito molhado, recife prateado, cinza-camuflagem, cinza-inox, granizo, elefante, cinza-tubarão, cinza-brasão, cinza-violino, azul-aço, cinza-nimbus, cinza guarda-chuva, cinza-argos. Destruir o mundo inteiro é um trabalho e tanto, escreveu o poeta Enzensberger. Não vá, dizem as vozes, o gato e o humano. Mas tenho cá meus motivos e tragar o fumo do agronegócio deve abrir o peito para o que está por vir. O ar do tempo, diz cheia de ironia a voz chatinha.
Decido ir. Não vou perder essa chance.
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