O corpo leitor
por José Henrique Bortoluci
A leitura é, antes de tudo, uma atividade física. Aprender a ler é também aprender como segurar o livro usando uma ou duas mãos, ajustar a distância entre o papel e os olhos, medir o peso da matéria livro, calcular se é necessário apoiá-lo em uma superfície ou se basta a força das mãos, e se estas ficam bem espalmadas ou agarradas àquele objeto. Lemos com o corpo todo: é necessário acomodar as pernas, alinhar a espinha, lidar com o formigamento nas nádegas e com as dores no pescoço. Todo leitor desenvolve suas artimanhas para enfrentar a vista cansada, os olhos que lacrimejam e ardem, as cadeiras imperfeitas que nos machucam as costas.
Como qualquer arte do corpo, a leitura é um esporte que se transmite de pessoa a pessoa, de geração a geração, mas sobre a qual só se aprende com a repetida prática solitária. Assim como aprendemos a nos tornar uma criatura que anda de um jeito próprio, que se deita e se levanta, que come e que transa à sua maneira individual, também desenvolvemos aquela arte íntima, a estilística de nosso corpo leitor. Começamos a dominar essa arte na infância, enquanto somos ensinados a decodificar as letras e juntá-las em palavras e frases.
Três cenas de leitura na infância:
Eu leio no banco de trás do carro do meu pai algum livro que retirei na biblioteca pública de Jaú — Os doze trabalhos de Hércules; Volta ao mundo em oitenta dias, livros da Coleção Vagalume. Os livros têm cheiro de papel velho e úmido, as lombadas sempre manchadas e as capas surradas pelo tempo. Fico enjoado com o movimento do carro enquanto leio deitado no banco de trás. Me resta um amor melancólico por esse enjoo e por aquele cheio de bolor, as sensações vivas daquelas leituras iniciais.
Eu peço aos meus pais dois reais para comprar o jornal. Isso é na metade dos anos 1990, quando os dois grandes jornais de São Paulo tentam atrair leitores incluindo fascículos nas edições de domingo que compõem obras de referência — enciclopédias, dicionários, guias de viagem. Coleciono esses fascículos e os encaderno quando sobra algum dinheiro. Alguns eu jamais encadernaria. Os livros que vou montando são o princípio de minha biblioteca, juntos de alguns catecismos e outros livros religiosos. O apetite de ter os meus próprios livros — esse “desejo de biblioteca” — me leva por tabela à paixão pelo jornal, que até hoje prefiro ler em papel, dobrando e desdobrando as páginas do meu jeito, como aprendi a fazer com dez anos, enquanto sujava meus dedos de tinta folheando aqueles periódicos, sempre sentado com as pernas dobradas no mesmo canto do sofá, enquanto meu pai cozinhava, minha mãe trabalhava na máquina de costura e meu irmão dormia até mais tarde.
Me deito no tapete da sala durante tardes quentes de Jaú, depois de voltar da escola. Sem camisa, minhas costas suadas ficam marcadas pelo tapete. Seguro no ar com as mãos estendidas O mundo mundo de Sofia, A hora da estrela, e depois a poesia de Manoel Bandeira e os contos de Machado de Assis, e hoje, ao reler qualquer um desses livros, sinto novamente as marcas nas costas por onde escorre suor naquela sala apertada da minha infância.
Caminhar no deserto, olhar as estrelas
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