O fracasso da “flâneuse”
A historiadora e jornalista Paula Carvalho fala sobre Tóquio e o livro Flâneuse, de Lauren Elkin

Foto: arquivo pessoal
Sou encantada pelo livro Flâneuse, em que a escritora estadunidense Lauren Elkin escreve sobre caminhar por várias cidades (Paris, Nova York, Veneza, Londres e Tóquio) na companhia de outras personalidades que flanavam por essas mesmas localidades, como Jean Rhys, Virginia Woolf, Sophie Calle, entre outras.
A parte sobre Tóquio, no entanto, destoa do resto do livro, a meu ver. É uma das poucas que traz um autor homem como o guia literário da cidade: o francês Roland Barthes com seu O império dos signos, em que faz reflexões sobre a linguagem a partir das suas visitas ao país ao longo dos anos 1960. Elkin deixa claro que quando se mudou para o Japão com o antigo namorado, não estava em um bom momento, pois àquela altura não tinha nenhuma vontade de sair de Paris, cidade pela qual sempre fora apaixonada. Além disso, ela finalmente ganhara familiaridade com a língua francesa, a tal ponto que chegava a ser confundida com uma local.
Nessa mudança, de Paris a Tóquio, a autora conta que não conseguiu se conectar com a capital japonesa. Até aí tudo bem. Como viajantes, turistas, expatriados, imigrantes, não somos obrigados a nos conectar com todos os lugares aonde vamos parar. No entanto, acho sempre bom dar uma chance — e se se não tivermos sucesso, que saibamos entender de onde vem essa sensação.

Foto: arquivo pessoal
Ao contrário das outras cidades que visitou, Elkin não estava aberta para se aventurar por Tóquio. Faltou a mesma sensibilidade que ela teve para os demais destinos, a mesma abertura para ser arrebatada e se perder. O medo e a frustração tomaram conta dela, o que a impediu de sair da sua zona de conforto. Ao menos ela tinha consciência disto: “O que mais me aborrecia era a certeza de que lá fora havia uma ótima cidade, cheia de lugares que queria descobrir, mas não sabia onde procurá-los. Não sabia o que havia lá fora. Não sabia aonde ir, por onde andar”.
Na minha opinião, as reflexões de Elkin sobre Tóquio são muito injustas. Ela afirma que a cidade é feia, industrial demais; queria um lugar onde pudesse se sentir em casa, que pudesse explorar a pé. “Mas Tóquio não é uma cidade para andar; é grande demais, até mesmo os bairros são grandes demais para vaguear.” Fiquei pasma ao ler esse trecho. Discordo totalmente. Em abril de 2019, passei alguns dias em Tóquio durante o hanami, a floração das cerejeiras. Logo de cara achei uma cidade bonita, limpa, organizada. Gosto de grandes cidades, sinto-me em casa. Quanto a andar a pé, no meu primeiro dia, caminhei 22 quilômetros (segundo dados bastante “confiáveis” do meu celular); no seguinte, dezoito.

Foto: arquivo pessoal
E foram trajetos lindos, de parque em parque, ao longo do fluxo de rios, seguindo o caminho das pétalas cor-de-rosa. De vez em quando peguei o metrô, mas sempre gostei de andar, e consegui fazer isso em Tóquio com bastante tranquilidade, indo de bairro em bairro. Claro que eu estava hospedada em uma região bem central — Shibuya, de onde era fácil seguir para outros lugares —, ao contrário de Elkin, que ficou confinada em Ark Hills, um complexo urbano onde moram muitos gaijin, os estrangeiros. De todo modo, gastei a sola dos pés nessas caminhadas, tanto que tinha que deixá-las para cima quando chegava ao hotel, pois estavam só o pó.
Acho que, nesse ponto, o local de origem de cada um e as experiências vividas em outras cidades influenciam no modo como nos relacionamos com cada novo destino. Nasci e cresci em São Paulo, cidade que tem uma feiura bastante peculiar, com um plano urbanístico que favoreceu o automóvel e áreas realmente difíceis de caminhar. Elkin é de Nova York, metrópole plana, onde é fácil se locomover a pé; o mesmo se pode dizer de Paris, onde ela mora até hoje.

Foto: arquivo pessoal
O referencial da autora, acostumada com cidades do chamado mundo desenvolvido, é diferente do de pessoas que nasceram em grandes metrópoles do mundo em desenvolvimento, onde é tudo mais caótico e difícil. Ninguém perguntou, mas trago aqui uma breve lista de cidades onde senti dificuldade em caminhar: Cidade do México, por ser cortada por grandes avenidas; Nova Delhi, onde o caos encontra o caos; Pequim, por causa de sua monumentalidade, embora seja plana.
Aliás, Pequim, em um primeiro momento, representou para mim o que Tóquio foi para Elkin. O choque cultural vivido na carne. “Como se locomover numa cidade de ruas sem nome?”, escreve ela, frustrada. A língua a isolava, assim como a falta de referenciais conhecidos. Foi o que senti na capital chinesa. A gente fica realmente perdida.
Nesse sentido, assistir em Pequim ao dvd pirata do filme Encontros e desencontros, de Sofia Coppola, foi importante para mim — do mesmo modo que foi importante para Elkin em Tóquio. Finalmente entendi o filme, pois estava vivendo aquela mesma experiência de estar lost in translation. Situar-se pode ser realmente difícil, mas depois que a chave vira, não há recompensa melhor: perder-se e entender que não precisamos compreender tudo, sentir já basta.

Foto: arquivo pessoal
O capítulo sobre Tóquio do livro de Elkin mostra, portanto, o fracasso da flâneuse. Ou seja, é importante que a pessoa tenha uma disposição individual para se aventurar pelas cidades; se isso não existir, não será possível flanar por aí. É difícil conhecer o outro, é preciso estar aberto e disposto em relação ao desconhecido, abrir mão do controle e se deixar perder. Por vezes, o problema pode não estar na cidade, mas dentro de nós.
por Paula Carvalho, autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt

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