Vou-me embora pra Transilvânia
Oscar Nestarez, coorganizador do livro Tênebra, conta como foi sua viagem ao refazer os caminhos de Drácula
Eu vinha sonhando com esta viagem desde meus treze, catorze anos. Por causa de filmes e livros vampíricos, a Transilvânia virou uma espécie de refúgio pros meus devaneios de menino. No final da infância e no começo da adolescência, minha imaginação transbordava de mistérios, monstros, aventuras medievais, castelos assombrados, florestas etc. E à medida que eu ia pesquisando, fuçando, a “terra além da floresta” (tradução de “Transilvânia”) se mostrava o território ideal para situar esse universo íntimo. Acabou virando minha Pasárgada particular: lá eu era amigo do conde, e a existência era uma aventura sinistra.
Pois bem: quase trinta anos depois, enfim levei meu corpo para onde a minha imaginação já perambulava. Em dezembro de 2023, viajei para a Transilvânia usando como mapa o romance Drácula e a lenda que o inspirou: procurei seguir os passos de Jonathan Harker, que protagoniza o trecho inicial (meu preferido) do livro de Bram Stoker, e depois segui o rastro de Vlad Tepes, também conhecido como Vlad, o Empalador, personagem histórico que inspirou a composição ficcional do famoso conde Drácula.
São três os destinos de Harker na Transilvânia: Klausenburg (ou Cluj Napoca), Bistritz (Bistrita) e, por fim, o castelo de Drácula. Como esse castelo só existe no romance, elaborei um roteiro em parte literário, em parte histórico. Voei de Madri até Cluj Napoca e de lá fui para Bistrita. Atravessei o Passo Borgo, depois passei por Sighisoara, cidade natal de Vlad Tepes, e concluí a viagem em Brasov, quase na fronteira com a Valáquia, outra província histórica do país, onde fica a capital, Bucareste. Fiz todo o trajeto não de trem ou carruagens, como Harker, mas de carro, pois o tempo era curto.
No caminho de cerca de uma hora e meia entre Cluj e Bistrita, vivi o tão esperado encontro: em meio às brumas do anoitecer precoce de fim de outono, florestas escuras por todos os lados. A estrada sinuosa atravessa inúmeros vilarejos e a silhueta de igrejas góticas e ortodoxas não nos deixa esquecer da antiguidade de tudo.
De Cluj a Bistrita sob o manto do anoitecer (acervo pessoal)
No romance de Stoker, Harker é o advogado enviado à Transilvânia para intermediar a aquisição de imóveis na Inglaterra por parte do conde. Quando chega a Bistrita, ele se hospeda na estalagem Coroa de Ouro, cuja proprietária lhe entrega o crucifixo que mais tarde salvará sua vida. Apesar de ter ficado num hotel de mesmo nome (Coroana de Aur), não recebi amuleto algum. Talvez porque fosse feriado: cheguei lá em primeiro de dezembro, Dia da Grande União Romena. Nesta data, em 1918, o então Reino da Roménia se unificou com as regiões da Transilvânia, da Bessarábia e de Bukovina, compondo o território atual do país.
No dia seguinte, dirigi até a passagem Tihuta, o nome local para o Passo Borgo, onde Harker embarca em uma carruagem que o levará até o castelo de Drácula. Não se trata de um desfiladeiro no qual “as montanhas pareciam se aproximar de nós […], olhando-nos ameaçadoramente”, como Stoker descreve, mas de um extenso vale entre montanhas baixas dos Cárpatos, a imensa cordilheira que vai da República Tcheca até a Romênia.
Neste ponto, me despedi do herói de Drácula e parti em busca de Vlad Tepes rumo a Sighisoara.
Atravessando o Passo Borgo (acervo pessoal)
Nas duas horas e meia de viagem até a pequena cidade, o desafio é manter os olhos na estrada. Os Cárpatos se tornam mais imponentes e ameaçadores. Mesmo ao meio-dia, a névoa paira densa sobre a multidão de esqueletos de árvores, corvos crocitam e ursos estão à espreita — o país tem a maior população de ursos pardos da Europa. Depois do anoitecer, o crocitar dá lugar a uivos, e não apenas de cães. Um sonho — ou pesadelo, dependendo do ponto de vista.
Sighisoara é conhecida pela cidadela no topo de um monte e cercada por muros. O lugar oferece um bom resumo da história geral da Transilvânia: foi fundado no século 11 por saxões; passou ao domínio do reinado húngaro; no século 16, o império otomano assumiu o controle e o deteve até o século seguinte, quando a região passou às mãos dos Habsburgos, nas quais permaneceu até o começo do século 20, sendo a seguir incorporada pela Romênia.
A cidadela de Sighisoara (acervo pessoal)
A contextualização é necessária para entender a riqueza histórica da região, da qual, do ponto de vista romeno, o mítico Vlad Tepes é só uma pequena parte. Pequena, porém importante: voivoda (governante) da Valáquia no século 15, ele exerceu papel determinante na defesa da região contra o império otomano. Embora seja conhecido mundo afora pelos castigos cruéis infligidos a inimigos derrotados — o empalamento sendo o mais famoso —, sua figura não se restringe a isso, o que explica o embaraço com que romenos recebem a empolgação de estrangeiros em busca dele (meu caso).
A meu ver, há um ponto positivo neste distanciamento: a exploração turística tanto do personagem literário quanto da figura histórica é acanhada, o que permite conhecer os lugares sem tantas intervenções turísticas que eventualmente distorcem sua essência. A exceção é o Castelo Bran, perto da cidade de Brasov, meu último destino na Transilvânia.
Como o castelo descrito por Stoker não existe, e como o castelo de Poenari, o verdadeiro lar de Vlad Tepes, hoje está em ruínas, Bran virou o “castelo de Drácula” na marra. Está no distrito de Bran, a 25 quilômetros de Brasov, e tem salas temáticas que pretendem assustar, mas que só parecem kitsch. São um pontinho negativo deste lugar por si só magnífico, que data do século 13 e foi a residência da rainha Maria, a última rainha consorte romena antes de o país se tornar uma república socialista, em 1947. E com a pátina da neve que caía durante minha visita, fica ainda mais evocativo:
Castelo Bran (acervo pessoal)
Brasov, por sua vez, é outro tesouro da Transilvânia. A cidade está encostada nos Cárpatos e até o século 18 foi o local mais importante da região. Chama a atenção sua grandiosidade decadente, o espectro de uma belle époque há muito encerrada. A qualidade fantasmagórica do centro histórico condiz com a cordilheira coberta por névoas ao redor. Em Brasov, não há registros da passagem de Vlad Tepes — à exceção de uma breve estadia no castelo Bran — nem do Drácula de Bram Stoker. Mas o museu da história da cidade também nos mostra que há muito mais a se encontrar na região além desses rastros.
Brasov e os Cárpatos enevoados ao fundo (acervo pessoal)
De Brasov, voltei a Cluj Napoca, de onde retornaria a Madri. Cluj é a maior cidade da Transilvânia, conhecida pelas universidades e indústrias que abriga. Aqui, nosso encontro é com a história recente da Romênia. A imponência de alguns prédios públicos e as estátuas gigantescas exaltando figuras locais nos lembram de que estamos em um país que, de 1965 até 1989, fez parte da cortina de ferro, sob as asas da União Soviética.
Cluj Napoca (acervo pessoal)
Foi mais uma tonalidade aplicada ao fascinante quadro da Transilvânia. Enquanto voltava para a Espanha, refleti sobre quantos séculos percorri em seis dias. Sobre quantos povos encontrei. Fui para a Romênia em busca de uma abstração, uma quimera em parte literária, em parte histórica e em parte imaginária. Encontrei-a, sim, nas paisagens, na atmosfera, no crocitar dos corvos e nos uivos dos lobos; adivinhei-a oculta nas brumas distantes. Mas também ouvi sua voz, a voz da terra, dizendo que nosso encontro era só o começo.
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