Fabiane Secches fala sobre a tradução de ‘Frio o bastante para nevar’
A psicanalista respondeu algumas perguntas sobre tradução, psicanálise e a delicadeza de Jessica Au
Qual foi o principal desafio na tradução de Frio o bastante para nevar?
R: A autora entrecruza a narrativa que a princípio parece ser central — a viagem da protagonista com a mãe ao Japão — com rememorações de diferentes momentos de sua vida. Assim, o texto vai se abrindo e ganhando muitas camadas temporais. Na psicanálise, acreditamos que, para o mundo psíquico, tudo é presente. Tudo que existiu continua existindo de alguma maneira em quem somos hoje. É bonito como Jessica Au parece construir uma representação literária dessa ideia, indo e vindo nas lembranças e fazendo associações com sua história e com a história de sua mãe, assim como com os afetos da relação entre as duas. Tudo isso com uma delicadeza impressionante, sem nos causar qualquer vertigem. É uma leveza que encanta também pela densidade que carrega. Manter esse tom na tradução foi um dos maiores desafios, além da especificidade de vocabulário de algumas descrições e da cultura japonesa.
Como você acha que sua experiência com a psicanálise contribui para o exercício da tradução?
R: Esses processos de rememoração e de livre associação da narradora são familiares para a psicanálise, então foi interessante vê-los tão bem reconstruídos literariamente. A psicanálise nos pede uma escuta que seja flutuante, mas, de outro lado, também atenta à linguagem, ao vocabulário, às estruturas das frases, em especial ao que desafina, ao que parece fora de lugar. Talvez essa experiência me atravesse como leitora e, com sorte, talvez possa contribuir para o trabalho impossível que é a tradução de um texto literário. Mas, eu diria que é a literatura que mais me ajuda como psicanalista do que o contrário. Tem sido assim desde Freud, é uma dívida antiga.
Que outros escritores você relacionaria à Jessica Au, e por quê?
R: Poucas vezes eu li um texto capaz de me transportar para a sua atmosfera de forma tão delicada. Na literatura contemporânea, talvez Sally Rooney faça algo parecido em Pessoas normais e Sigrid Nunez, em O amigo. Não diria que essas autoras têm o mesmo estilo, mas há alguma coisa nesses livros que me causou uma impressão muito específica e talvez um pouco semelhante. Além da relação cuidadosa com os detalhes e com o próprio tempo, essas autoras conseguem ser boas contadoras de histórias enquanto também incluem algumas reflexões filosóficas, entremeadas ao enredo, sem que com isso seus romances pesem um grama a mais. Em relação a alguns temas, poderíamos pensar numa aproximação entre Jessica Au e Elena Ferrante, em especial quanto à tetralogia napolitana. Em Frio o bastante para nevar, como ocorre na obra de Ferrante, temos uma protagonista que encontra nos estudos de literatura o passaporte para um outro mundo, diferente daquele de origem, e também acompanhamos os movimentos de encontros e desencontros entre mães e filhas. Mas o tom é tão diferente que, se tivesse que relacionar o trabalho de Jessica Au a outra obra, pensaria não em um livro, mas no filme Aftersun, de Charlotte Wells, que também conta a história de uma breve viagem — no caso, de pai e filha —, recolhendo fragmentos de lembranças e retratando a complexidade do amor e de sua dança própria de aproximação, afastamento, reaproximação. A delicadeza desse filme talvez se pareça um pouco com a delicadeza que encontrei no romance de Jessica Au.
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