Marilena Chauí escreve sobre novo livro de Marilene Felinto
Leia o texto que a filósofa declamou no lançamento de Mulher feita e outros contos, durante o Festival Faísca
Estamos diante de uma profunda meditação sobre a literatura e o “decifrar-se como uma epígrafe” (ou uma esfinge), e que se mostra imediatamente com os títulos dos contos, em que Marilene apanha lugares comuns e palavras feitas para lhes dar um sentido não apenas novo, mas frequentemente sublime (como mulher feita, que usamos para dizer adulta; ponto cruz e ponto atrás, que usamos para bordar; canja, como sopa de galinha; segunda classe, como hierarquia de transporte; ao vivo, como termo de televisão e computador).
Primeira morte é um mergulho no impossível – o escritor que não suporta o peso terrível da literatura como doloroso processo aberto e vivo, incontrolável e imponderável e passa ao trabalho mecânico com o endereço http mecânico definitivo, isto é, controlado de ponta e ponta sem riscos do mergulho na criação, na contingência e que escolhe um sertão árido, uma caatinga inóspita contraposta à verdura luxuriante da floresta toda verde. Ou seja, esse sertão ou “o seu sertão” é a escrita rejeitada e morta, aquela solidão que impede que seja escrito Grande sertão: veredas. Entretanto, o contraponto a Primeira morte é feito, evidentemente, por Ao vivo, dedicado ao morto imortal, numa visão feliz, alegre, jocosa, corajosa da figura do escritor que aceita o risco da literatura e que, por seus escritos, permanecerá para sempre vivo.
Há muitas entradas para a leitura deste livro e seria impossível examinar mesmo apenas algumas. Por isso escolhi como caminho do “deciframento da epígrafe” revelações cujo centro é a meditação poética sobre a diferença e a identidade, que surgem em todos os contos.
Em Hipertexto, a diferença e a oposição entre a elegância e a bondade da professora e a rudeza e a crueldade do pai não podem esconder que sob a benevolência de uma e a violência de outro se esconde uma identidade – a exigência normativa em lugar da criação; da mesma maneira, a diferença entre desenhar e escrever desemboca na identidade do lapiscrito e do papel quadriculado no qual o desenho é impossível, mas cuja impossibilidade só se mantém enquanto desenhar e escrever forem diferentes, isto é, enquanto não for encontrada a boa perspectiva (exigida pela professora de desenho) e que só será encontrada pela escritora quando o hipertexto é o lapiscrito e a escritora é, ela própria e em si mesma, um hipertexto.
Em Mulher feita, a diferença começa pela pergunta: “quem me fez desse jeito” (porque sou feita assim?), com uma descrição violenta da monstruosidade dos seios em contraposição à elegância do peitoral masculino, mas dessa diferença passa à identidade: o corpo feminino e o corpo masculino possuem protuberâncias – seios e pênis – e ambos estão virados para fora.
Em Segunda classe, partimos da diferença – da distância linguística entre ambas e do asco de uma das mulheres pela outra – e chegamos à identidade – o reconhecimento de que ambas são mulheres da segunda classe.
Em Formiga moderna, dá- se o oposto: partimos da identidade ancestral das duas mulheres com a referência comum à tanajura e chegamos à sua total diferença, pois a moça moderna não conhece a fome e a penúria, que levavam a mais velha a comer tanajuras; ela é vista pela comedora de formiga como uma moderna, uma espécie de estrela supernova, uma superstar, com vida melhor e sem o peso do passado: “era quase felicidade”.
Mas há três contos em que a diferença não se transforma em identidade, mas se mantém como diferença:
Em Escarlatina, a personagem feminina diz explicitamente que se interessa pela diferença – o menino loiro de olhos azuis – e se sente agredida pela indiferença – o menino jamais olha para ela. A diferença entre eles e a compensação pela indiferença do menino vêm se exprimir no jogo de bola de gude, no qual a menina é excelente, e na coleção de bolas azuis por ela conquistadas, mas passamos da compensação à vingança quando a escarlatina transforma o príncipe e anjo loiro em demônio vermelho, “diabólico a despeito de seus tristes olhos azuis”. Ou seja, a diferença não está apenas entre ela e ele, mas tornou-se diferença dele e nele.
Em Hipertexto, Primeira morte, Ponto cruz e ponto atrás, a diferença entre homens e mulheres é instransponível: na descrição do masculino prevalecem os trabalhos manual e mecânico (no caso do pai e daquele que abandonou a escrita) e em Procurando Michael, a crueldade da guerra – essa dimensão mecânica e bélica vem depositar-se na semelhança com o trabalho das mulheres – desenhar, costurar, bordar –; mas, no caso dos homens, estão presentes a violência e a crueldade (Michael nunca respondeu à pergunta: você matou gente?), enquanto no das mulheres é uma cruz e um andar pra trás, exprimindo seu sofrimento e sua infelicidade – a mãe “chorava por dentro”. A diferença não se dará entre trabalho masculino e feminino, mas pela decisão de uma das filhas que decidiu ser feliz, pois não irá costurar nem bordar. Ou seja, aqui é procurada a diferença e não a identidade, seja entre homens e mulheres (como em Mulher feita), seja entre as próprias mulheres.
Entretanto, a contraposição entre mulheres e homens é nuançada em Procurando Michael, porque, soldado da guerra do Vietnã, ele está destruído pelas lembranças e pelo arrependimento. No entanto, a diferença entre masculino e feminino não está totalmente desfeita, pois, no final, a mulher afirma que ele é “uma pergunta sem resposta” (a pergunta célebre da canção dos anos 1960 – para onde foram todas as flores – e para qual ela não encontra nele a resposta) e indaga se “Michael foi de verdade”. Isto é, nos lança no coração da literatura.
A contraposição entre masculino dominador e feminino dominado aparece, mas vai sendo desfeita na poesia de Canja, porque agora as mulheres são senhoras de seu território: o quintal e seus recônditos, “nos quais mandavam a mãe, a tia e a menina”. Canja é comovente: a descrição da matança da galinha para fazer galinha ao molho pardo é feita com palavras que retiram toda violência do gesto, mas sobretudo no contraponto entre 1900 e hoje, quando a mãe está bem velhinha e só toma canja e a filha nos oferece uma receita para a canja de hoje indicando a regra que devemos seguir como modo de preparo: “Revire na memória as pequenas grandezas domésticas”. Poesia sublime.
O que impressiona é o fato de que este livro, com momentos de crueza total, é um soco no estômago e, ao mesmo tempo, prosa sublime. Estamos diante de um escritora extraordinária que mergulha no cotidiano e na memória para transmutar o sentido das palavras e fazer surgir perfeição e beleza, ou ao contrário do que propunha a professora de desenho aos seus alunos, à maneira grega e clássica: que a beleza está ne proporção e na harmonia. Marilene Felinto no faz percorrer sendas ocultas de dor, alegria, desespero, saudade, esperança e insubordinação contra o conformismo. Há em seus contos aquilo que Espinosa chama de fortitudo, virtude suprema que se traduz em exigência consigo mesmo e em generosidade da relação com o outro.
Caminhar no deserto, olhar as estrelas
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[saiba mais]Lição de casa
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