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29/09/2022

Michel Gherman responde a três perguntas sobre o livro ‘O não judeu judeu’

O que faz alguns setores da comunidade judaica cederem ao bolsonarismo, cujo discurso flerta com o fascismo, o racismo e até mesmo o antissemitismo?

O bolsonarismo se apresenta com três elementos que são, por assim dizer, elementos de sedução para setores da comunidade judaica. O primeiro elemento é o sonho de ser maioria – afinal de contas, o bolsonarismo propõe uma conversão ao judaísmo, um judaísmo imaginário, que não tem a ver com o judaísmo real e concreto, mas que utiliza referências que se parecem muito com ele. Você usa símbolos para fora que são símbolos conhecidos para dentro. O desejo de ser parte de uma maioria, de um grupo majoritário, um desejo acalentado (e muito) para os judeus, parece ser garantido. 

O segundo elemento tem a ver com esses símbolos: uma ideia de que o bolsonarismo é simpático aos judeus, à causa de Israel, ao sionismo. Em uma perspectiva de antissemitismo histórico, em que os judeus são sempre perseguidos, é difícil convencer os judeus brasileiros que aqueles símbolos são antissemitas – falam sobre uma Israel imaginária, não sobre o judeu real nem sobre Israel real. 

O terceiro elemento é que os judeus brasileiros são profundamente brasileiros. Em 2018, e talvez ainda em 2022, você tem a aposta no antipetismo, na direita, em perspectivas conservadoras produzidas e promovidas por setores urbanos, brancos, de classe média e classe média alta. Esse é o perfil dos judeus brasileiros. O que eu quero dizer é o seguinte: os judeus não são impedidos de votar no Bolsonaro pela relação com o fascismo, porque a relação com o fascismo é uma relação crivada de subjetividade. Em última instância, os judeus acabaram votando como os brasileiros – e eles votaram como seus vizinhos votaram: os que moram na zona sul do Rio de Janeiro ou na região dos Jardins em São Paulo votaram exatamente igual aos seus vizinhos não judeus. Houve uma pequena diferença: em relação a esses grupos, os judeus votaram um pouco menos no Bolsonaro do que o brancos de classe média e classe média alta que moram nas grandes cidades. Mas é uma questão de perfil socioeconômico. 

Então, o perfil socioeconômico, a relação com a perspectiva de maioria e o uso de símbolos que acionam a ideia de que o bolsonarismo é aliado dos judeus foram determinantes para entender como não houve uma desautorização do bolsonarismo por parte de setores expressivos da comunidade judaica. 

Agora, o debate sobre nazismo e fascismo é importante. Esse talvez seja um ponto fundamental: há a percepção de que nada pode ser comparado ao fascismo e ao nazismo, o que acaba produzindo uma perspectiva ahistórica. É como se o fascismo e o nazismo tivessem acontecido somente naquelas condições, naquele momento, daquela forma. Enquanto não houver outro Auschwitz, outras câmaras de gás, outras chaminés, não há possibilidade de comparação com o fascismo e o nazismo. Isso é um equívoco muito grande, que des-historiciza o fascismo e o nazismo e não leva em consideração que eles não começaram em Auschwitz. Começaram justamente com grupos ultraconservadores, com perspectivas raciais e com referências dentro das democracias em crise na Europa. Ou seja, não haveria Auschwitz em 1941 se não houvesse a eleição de Hitler em 1933. Uma das questões que parece fundamental pensar daqui para frente é a refundação de uma nova pedagogia do nazismo, e em algum sentido o encerramento da era da pedagogia do Holocausto. O Holocausto não ensina nada a ninguém, e a sacralização do Holocausto – combatendo uma suposta banalização – permite que outras formas de nazismo apareçam sem serem acusadas pelo nome que deveriam ser: nazismo e fascismo. 

Por que a escolha do termo “colonização” para explicar esse fenômeno que você aborda no livro?

Com relação aos debates sobre os conceitos de pós-colonialismo e de relações de apropriação cultural, é disso que se trata em algum sentido o bolsonarismo utilizar os símbolos judaicos para, na verdade, excluir os judeus, para desapropriar os judeus dos seus símbolos. Essa dialética de apropriação e desapropriação é conhecida em outros campos – por exemplo, com as religiões afro-brasileiras, com as referências de vestimentas afro-brasileiras. Esse é o mesmo processo: você inclui uma estética branca, cristã, fundamentalista, e em algum momento exclui dessa estética aqueles possíveis aliados, que nesse caso são os judeus. Isso é o que aconteceu com o bolsonarismo. O bolsonarismo inclui a bandeira de Israel, símbolos judaicos, uma narrativa pró-Israel e pró-sionista para em algum momento excluir os judeus que não se alinham, que não estão próximos das perspectivas da gramática bolsonarista – judeus liberais, de esquerda, progressistas, vinculados a uma dimensão do campo democrático são excluídos. Então, esse processo não é só um processo de apropriação pontual, é um processo de apropriação e colonização em níveis mais acelerados. Os judeus que permanecem dentro dessa perspectiva bolsonarista e que aceitam a exclusão dos que não estão alinhados com essa gramática são recebidos; os excluídos ficam de fora da comunidade judaica. É um processo muito parecido com o de colonização e colonialismo. 

A apropriação bolsonarista do judaísmo criou novas pontes de diálogo entre os judeus de esquerda e outros setores da esquerda ou não houve mudanças nesse sentido?

Não sei. Um dos elementos fundamentais a entender é que a primeira manifestação contra Bolsonaro, a primeira manifestação em que ele foi efetivamente tratado como nazista e fascista, aconteceu na porta da Hebraica, no Rio de Janeiro. Apesar disso, se fala muito sobre o que aconteceu dentro da Hebraica. A esquerda brasileira não utilizou como referência de construção de uma identidade de resistência os judeus de fora da Hebraica, dos movimentos juvenis. Ou seja, a ideia de que os judeus todos apoiaram Bolsonaro tem a ver com um apagamento, com a invisibilização dos judeus que estavam fora. Tem a ver com a ideia de que, para a esquerda brasileira, ser judeu é ser branco, rico, cristão, conservador, armado e ultracapitalista. São exatamente os mesmos critérios que a extrema direita usa, mas a extrema esquerda utiliza isso na dimensão e na chave do negativo: é negativo ser branco ou vinculado a uma branquitude, é negativo o ultracapitalismo, um discurso armamentista, o fundamentalismo religioso, é negativa uma heteronormatividade. Para a direita, isso tudo é positivo – mas me parece que os dois grupos (setores da esquerda e a extrema direita) estão crivados de antissemitismo. É preciso que a esquerda entenda – e eu espero que esse livro ajude – que são fundamentais pontes com elementos que foram importantes na resistência ao bolsonarismo, quais sejam: os judeus progressistas, liberais, de esquerda, que estavam na porta da Hebraica e que organizaram grupos como os Judeus pela Democracia, os movimentos juvenis; aqueles primeiros elementos da sociedade brasileira que chamaram o fenômeno pelo seu nome, que chamaram bolsonarismo de nazismo. 

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